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Lula, e a política do tiozão de churrasco

O Brasil, quando tinha uma “elite” e uma “plebe” claramente definidas, tinha um, digamos, funcionamento gerencial mais bem resolvido. Era a chamada Belíndia (Bélgica + Índia, termo cunhado pelo economista Edmar Bacha na década de 1970), em toda sua nitidez. A missão do PT de borrar e permeabilizar essa divisão, claríssima e cruel, tinha uma grande qualidade de justiça social. O que poderia dar errado?

O que deu errado foi a preguiça do PT em disputar a antiga elite. Preferiu substituí-la por um acordo com a “elite da plebe”, ou seja, uma série de lideranças médias e pequenas, e toscas, que já estavam presentes, ou se apresentaram no processo.

Sem escalas (e em alguns casos chegando literalmente ao ministério), pastores, políticos de legenda de aluguel, chefetes sindicais mezzo corruptos, novos-ricos e mafiosos do ogronegócio (que p*rra é “Bumlai”? Quem deu ao BNDES mandato para turbinar o Eike, ou a JBS-Friboi?); todo um baixo clero ressentido que foi alçado ao poder de fato. O naipe de gente de quem os peessedebistas clássicos, por exemplo, teriam nojinho (tipo o ex-presidente FHC ter barrado Eduardo Cunha na Petrobrás – nem digo necessariamente por grandes valores éticos, mas só para não ter muita encheção de saco mesmo).

A chance de calibrar esse processo consistia em barrar o segundo mandato de Dilma. Porque ela já tinha demonstrado no primeiro que não tinha foco pra cortar essa espiral de tosqueira. Para mim, era óbvio que Dilma não poderia ter sido reeleita, ou o país colapsaria no fator nem/ nem: nem a (relativa) eficiência esnobe, nem a invenção de uma nova horizontalidade real (porque esses chefetes, que eu gosto de chamar de tiozões estupradores acaju, são meramente uma paródia [mais] *scr*ta da elite antiga).

Alguém aí tem coragem de dizer que o atual ministro da saúde Marcelo Castro é melhor do que José Serra (que Serra o horrível, valha-nos Omulu)? Por falar em Omulu, um outro exemplo: nossa nobreza africana, que era no mínimo respeitada como valor turístico-cultural, agora está sendo ameaçada de morte física. Os indígenas mais ainda, já são assassinados às pencas.

Os governistas gostam de mostrar uma lista de políticos corruptos dos partidos, na qual o PT não aparece na liderança (apesar de estar por perto). Mas não é essa a conta certa. A conta certa é somar todo mundo que é ou foi da base do governo – é aí que o estrago político promovido pelo PT fica claro.

Os exemplos são infinitos; poderíamos discutir a ministra mais querida de Dilma, a destruidora (e não é de corações) Katia Abreu, e uma parte considerável do ministério. Mas um dos mais caricatos é o do pastor José Ricardo Marques, que assume o Arquivo Nacional. De acordo com recentematéria de Cecília Ritto, “em dezembro, o diretor-geral Jaime Antunes, de 69 anos, no posto há 23, foi convocado para uma reunião com o ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso, e dele ouviu: ‘Há uma demanda da Casa Civil, e será necessário o uso do seu cargo’. José Ricardo Marques, do Pros (dono de uma bancada de nove deputados federais), pretende usar parte o orçamento de 95 milhões de reais para (…) descartar documentos para economizarem armazenamento”. Descartar documentos – do Arquivo Nacional. Claro. Sensacional.

A Belíndia virou uma Esbórnia, com as pecinhas todas no lugar errado. Não estou dizendo (como a direita gosta de afirmar) que as pecinhas estão todas erradas. Só que estão no lugar errado. E que isso isso vai f*d*ndo os encaixinhos delas.

Tomemos Lula, o mago dessa transformação, para análise. Foi, como eu disse, uma peça política importante na superação da nossa sociedade de castas (porque eram como castas rígidas, o que havia na prática). Quando Dilma afirma que “a América Latina e o mundo precisam de uma liderança com as características do presidente Lula”, ela está dizendo uma verdade e uma mentira. A verdade é que precisa, sim. A mentira é que Lula ainda vá servir para isso. Lula foi abduzido pela confusão condescendente que criou. Podia ter se tornado um dos seres vivos mais honrados do mundo (mesmo, vá lá, tendo cometido uns trambiques de percurso), mas não.

O próprio Lula, quando diz a amigos que “poderia ter ganho milhões, milhões” da corrupção, não mente. Poderia ter sido corrompido mais do que foi. No entanto, as denúncias do apartamento tríplex do Guarujá e do sítio de Atibaia, mesmo que sejam apenas “uma casquinha”, são complicadas, reveladoras, e degradantes. A fala do presidente do PT, Rui Falcão, de que seria normal Lula receber presentes de empreiteiras, é uma linha torta de defesa e – assim como a admissão de Lula de que esteve vistoriando o tríplex reformado com o presidente da OAS – praticamente uma confissão.

Tem gente inteligente e politizada desqualificando a denúncia do tríplex, e o “barquinho” do sítio – como diria Dilma, estão tentando preservar essa “liderança necessária”. A denúncia soa besta? Soa. Mas basicamente porque a trama que envolve Lula é besta, é de classe média gersista (de Gerson, o do slogan de um cigarro vagabundo sobre “levar vantagem”). Vide os filhos “empresários” que o ex-presidente criou, com vaibe de playboy de bairro, e conexões esquisitas e desproporcionais ao currículo, no Corinthians, na GameCorp, na M&M/ Hyunday etc.

O Lula “herói da classe operária” é uma alucinação dos marxistas românticos – na verdade a empatia e o sucesso de Lula vieram exatamente desse hibridismo psicopolítico e macunaímico dele, e não de ser algum fidel castrodo sur. Até o “homem mais poderoso do Brasil” pode achar graça em ganhar uma churrasqueira grátis, se tiver mentalidade de tiozão de churrasco.

Já escrevi que o que difere Lula do uruguaio Mujica é a noção “sacerdotal” do segundo. Para não colocar um preço na propina, talvez o único jeito seja o de não ter nada de seu mesmo. Fazer uma mulher de Júlio César tão severa (“à mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”, dizia o ditado romano) que simplesmente impossibilite a cantada. Essa não é a cara do Lula, o tiozão conversador pelos cantos do churrasco nacional . E marido de da. Marisa, que gosta de rodapé de porcelana.

Agora, em defesa da “liderança”, os blogs ditos progressistas (blogs orquestrados pelo  PT) estão ecoando em conjunto a conexão que a empresa-criadouro de offshores (lavanderias internacionais de dinheiro) Mossack Fonseca tem com a mansão da família Marinho (rede Globo) em Paraty. Dizem que a investigação do tríplex foi o “Riocentro” da Lavajato: queria atingir Lula e atingiu a Globo.

Ora, o Riocentro foi o episódio em que agentes da linha dura da ditadura explodiram no colo uma bomba que se destinava ao terror político (o ataque a um show realizado no dia do trabalho). A linha dura era uma ala do exército que, durante o regime militar, obviamente estava no poder.

Eu não duvido nada que seja possível implicar os Marinho em lavagem de dinheiro da pesada. Mas o romantismo alucinado quer tratar o PT como se estivesse longe do governo, sofrendo nas mãos do aparato de estado ditatorial. Só que Lula foi presidente do país eleito democraticamente por dois mandatos, seguidos por mais dois de Dilma. O juiz Moro não é – assim como o ministro do Supremo Joaquim Barbosa, indicado pelo próprio Lula, não era – um homem da repressão, atuando contra as organizações operárias, a não ser na imaginação mais delirante.

Foram essas organizações operárias (PT, PC do B) que, err, flexibilizaram sua percepção ética. Aquela com a qual fustigavam os anteriores governos “da elite”, assim chegando ao poder com uma promessa de faxina. De faxina, não de comprar e alimentar generosamente os tiozões acaju (Sarney, Maluf, Barbalho, Collor, e uma miríade de pequenos coronéis picaretas egressos dos esgotos políticos do país todo).

De um jeito ou de outro, Lula não sairá limpo dessa. Mesmo que escape de alguma sanção legal, haverá um custo político. Na mensagem em vídeo de aniversário do PT, meio patética, Lula disse que “torce” para que o PT, no ano que vem, esteja mais forte, “se Deus quiser”. Não é a fala de uma “liderança necessária”, conclamando à luta contra a opressão.

É que pode haver inclusive a sanção, mesmo. Por um “barquinho”, “dois pedalinhos”, um elevador e o rodapé de porcelana? Talvez. É uma tradição, desde Al Capone (que foi acusado por sonegação de imposto), ser pego pela tecnicidade, ou pelo delito menor. A famigerada Fiat Elba do ex-presidente Collor confirma. Desculpe pela falta de elegância, mas as narrativas de heroísmo estão em falta neste século. (Foto: Peter Leone/Futura Press). Alex Antunes

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