Aos 20 anos, filha de seringueiros se torna empresária e mostra que, no mundo dos negócios, o céu é o limite para quem não tem medo de empreender
Jorge Natal
No início do século passado, o educador Craveiro Costa, assombrado com as peculiaridades de uma região à primeira vista ainda selvagem, escreveu um livro clássico que chamou de A Conquista do Deserto Ocidental. Referia-se à região do Vale do Juruá, descrevendo, com precisão, a geografia e as peculiaridades da gente local. O Juruá – e todo o Acre – era, ainda, um novo território recém-conquistado à bala cujo povo lutava para se afirmar como parte da nação brasileira. Em busca do látex, as ocupações começaram nas margens dos rios e depois se expandiram para o interior da floresta, com os seringueiros, mais tarde, voltando à margem para formar os arremedos de cidade que hoje formam a população urbana de um novo Acre que está sendo construído pelos sonhos e a luta de pessoas como a comerciante Maria Fiama Lima de Souza. Aos 20 anos de idade, ela bem poderia ser uma personagem de Craveiro Costa ou mesmo de Gabriel Garcia Marquez em seu “Cem Anos de Solidão”, com todo o seu realismo fantástico.
Real e sonhadora, Fiama vive na pequena Porto Walter, cidade de aproximados dez mil habitantes, distante 70 quilômetros de Cruzeiro do Sul, e alcançada apenas pelo transporte aéreo ou fluvial. De avião monomotor, a distância entre Porto Walter e Cruzeiro do Sul é de apenas 20 minutos. De barco, navegando pelo rio Juruá, esta viagem pode durar um dia. Quando se chega a cidade, à primeira impressão é que aquele cenário bucólico, com o rio Juruá banhando os barrancos e lambendo a cidade de forma preguiçosa, quase lânguida, foi tirado do clássico ‘Cem anos de solidão’, do colombiano Grabiel Garcia Maquez. Os casarões, as igrejas e as vielas guardam lembranças dos tempos áureos da borracha, apogeu de uma economia que gerou muitas riquezas para coronéis de barranco e comerciantes. Um tempo de riquezas que Fiama, quase uma menina, quer trazer de volta, pelo menos no seu caso particular.
Depois da desativação definitiva dos seringais, na década 80, a então Vila Porto Walter passou a receber novos moradores. Eram povos vindos da floresta que viam em busca de emprego, melhores salários, estudos e qualidade de vida. Há sete anos, a família Lima de Souza, da qual Fiama é agora uma espécie de líder apesar de sua pouca idade, fez esse mesmo trajeto. O pai de Fiama, Valdecir Souza, vendeu uma pequena propriedade no antigo Seringal Novo Horizonte – três horas de distância, rio acima – e migrou, com toda a família – além de Fiama, a esposa e mais sete filhos (dois homens e cinco mulheres). Fiama é a quarta de uma família de oito filhos. É a terceira entre as mulheres. Mas, na cidade, em qualquer cidade, qual seria o destino de um casal recém-chegado e rebocando oito filhos?
Valdeci Coelho de Souza e Raimunda Nonata de Oliveira Lima, ambos com 41 anos, procuraram, eles mesmo, a resposta para a pergunta que começou a lhes afligir desde que desceram o barranco da colocação em que viviam no seringal em busca do desconhecido. Encontraram a resposta quando compraram um pequeno casebre na periferia da cidade e ali passaram a vender vinhos de açaí e buriti, duas iguarias muito apreciadas na região. Apesar de tudo, o casal conseguiu, à custa de muitas privações, uma pequena poupança. Que fazer? Por meses essa foi a pergunta que não queria calar até que Fiama surgiu com a resposta: “Deixem eu comprar e revender roupas”, pediu, serena, segura. Ali começava uma nova história para aquela família.
O início do negócio – Maria Fiama Lima de Souza tinha acabado de completar 18 anos. O detalhe da idade era porque a jovem precisava se deslocar até Goiânia (GO), que é uma espécie de Meca para quem vai às compras de confecções. “Fui com uma tia e quase não opinei em nada, mas observei muito”, revela. Dali em diante, com as economias dos pais, passou a viajar, sozinha, para São Paulo e Fortaleza, para comprar a confecção com a qual montou a mais sortida e movimentada boutique de Porto Walter..
Depois daquela viagem a Goiana, dois anos depois, a jovem montou uma microempresa, contratou um contador e alugou um ponto com 40 metros quadrados no centro da cidade, a Confecções Baby. A loja vende roupas para crianças e adultos. “Temos roupas simples e de marcas famosas como a Calvin Klein, Rimas, Sglum, Rat Boy, Base e Morena Rosa”.
Fiama vende à vista e a prazo porque, além de conhecer as pessoas da cidade, já tem uma clientela cativa, principalmente formada por servidores públicos. “Ela é uma pessoa simpática e que conhece muito do ramo”, diz a amiga e cliente Fátima Rodrigues da Silva. “Admiro a ousadia dela”, completou a balconista Samara Menezes Coelho.
Expansão e sonho
Bonita, solteira e ainda morando com os pais, a microempresária nunca fez um único empréstimo bancário, apesar de ter uma conta corrente no Bradesco, o único banco na cidade. Corajosa, Fiama está no compasso de espera para tomar aquela que talvez seja a decisão difícil de sua vida: ficar longe da família.
Ela pretende abrir uma filial em Cruzeiro do Sul e passar a morar na segunda maior cidade do Estado. “Não é que goste de assumir riscos, mas é preciso saber aproveitar bem as oportunidades”, assim concebe a comerciante, dizendo que pretende fazer um financiamento em um banco estatal. O novo domicílio tem, ainda, outra razão: Fiama quer realizar o sonho de fazer uma faculdade de Direito. Se aos 20 anos, ela conseguiu entrar para a galeria dos comerciantes bem estabelecidos, alguém duvida que possa vir a trocar o balcão pelos tribunais?
Para ser uma empreendedora ou empresária bem sucedida, ela já tem os caracteres necessários: conhece o ramo da atividade; tem facilidade no trato com pessoas; bom senso de organização; sabe tomar decisões; tem jogo de cintura para se sair bem em situações de risco; sabe delegar responsabilidades; é motivada e tem amor pelo que faz, além de lutar por suas idéias. Mais que isso: parece não ter medo de fracassar, razão pela qual tem sempre uma alternativa, uma espécie de as na manga, como, por exemplo, o sonho de estudar Direito. Craveiro Costa ou Gabriel Garcia Marquez bem que deveriam ter conhecido esta menina, uma valente comerciante da floresta.
Tribuna do Juruá