- Os jovens das gerações Y e Z sabem que o Brasil conta com agentes empreendedores que pagam seus impostos e estão preocupados com a construção de um país sério e próspero. Paralelamente devem ainda saber que, desde suas origens, aqui há também uma troika maligna composta de políticos e outros agentes públicos + agentes econômicos + agentes financeiros, que formam uma espécie de parceria público-privada para a pilhagem do patrimônio do Estado – PPP/PPE. Depois de 514 anos de saqueamento e extrativismo do Brasil pela criminalidade organizada político-empresarial, alguns grandes criminosos do País (que nestas bandas começaram roubando, estuprando, parasitando todos, fraudando o fisco e exterminando os nativos e os escravos), contrariando e desatendendo os contundentes protestos de distinguidos advogados, estão mergulhando nas águas profundas da delação premiada, que já sinaliza um grande estrago nas estruturas dessa criminalidade secular (que sempre se julgou impune).
- Paulo Roberto da Costa (ex-diretor da Petrobras), Alberto Youssef (doleiro), Júlio Camargo (Toyo-Setal) e Augusto Ribeiro de Mendonça Neto (da Tipuana, da EBR e da Toyo-Setal, que é controlada pela japonesa Toyo Engineering, que tem contratos de mais de R$ 4 bilhões com a Petrobras) são os quatro primeiros acusados envolvidos nas fraudes bilionárias da Petrobras que aceitaram fazer acordo com a Justiça em troca de benefícios legais, que podem livrá-los de longos anos de encarceramento. Ao mesmo tempo, estão devolvendo (ou prometendo devolver) imensas fortunas “arrecadadas” com o empreendimento ilícito. Essa vem sendo a maneira encontrada para se fazer valer o império da lei contra todos (inclusive contra os criminosos do colarinho branco).
- A delação premiada, desde a experiência da plea bargaining norte-americana e do pentitismoitaliano, se converteu (na visão do Estado) num valioso instrumento para a apuração de crimes, sobretudo os cometidos por agentes mafiosos ou do colarinho branco. Nas nações institucionalmente falidas (democracias precárias, mercado oligopolizado e concentrador, ausência do império da lei e sociedade civil clientelista e sem consciência cidadã), posto que historicamente dominadas e manipuladas por inescrupulosas oligarquias (é o caso do Brasil e da América Latina), pode-se imaginar o espaço imenso que está reservado à delação, visto que elas sempre foram impotentes para combater e controlar o crime organizado, especialmente quando estruturados pelos poderosos que desfrutam de privilégios e imunidades penais.
- A delação foi prevista, pela primeira vez, na Lei 8.072/90 (lei dos crimes hediondos), que passou a permitir prêmio (diminuição da pena) para quem colaborasse para o desmantelamento das quadrilhas de especial gravidade (ainda era um tempo em que jamais se imaginava que as classes dominantes sentassem nos bancos dos réus). Em virtude dos riscos sérios que representa (incriminação de inocentes, abuso das autoridades, blefes etc.), sobretudo quando explorada midiaticamente, sem a apresentação de provas contundentes daquilo que foi delatado, ela nasceu no Brasil como uma espécie de “Geni”, do Chico Buarque. Como? “Joga pedra na Geni! Joga pedra na Geni! Ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni!”. No princípio, como se vê, era só crítica: os progressistas a criticavam porque se reveste de uma traição premiada; os conservadores achavam um absurdo a diminuição de qualquer parte da pena, que deveria incidir integralmente sobre esses “quadrilheiros” desumanos (lógica do “nós” bons e os “outros” maus).
- Os anos foram se passando e o legislador foi acreditando nela cada vez mais, tanto que acabou sendo contemplada em vários textos legislativos: lei dos crimes hediondos (Lei 8.072/1990), lei de proteção das vítimas e testemunhas (Lei9.807/1999), lei do crime organizado (Lei 9.034/1995), lei de lavagem de capitais (Lei9.613/1998 e 12.683/12), nova lei de drogas (Lei 11.343/2006), leniência nos crimes econômicos etc. Cada uma conta com suas peculiaridades, anomalias e deficiências. Hoje a lei mais completa sobre delação é a 12.850/13 (nova lei do crime organizado), que permite diminuir pena, mudar o regime do seu cumprimento, perdoar o colaborador totalmente ou mesmo nem sequer denunciá-lo (não processá-lo).
- Depois de todo mundo amaldiçoar a delação premiada, eis que nas nuvens flutuantes, que sobrevoam a superfície verde-amarela, surge um Zepelim gigante (poder punitivo estatal), que paira sobre os edifícios, com seus dois mil orifícios (canhões), voltados tanto para a criminalidade clássica dos marginalizados (underclass) como, disruptivamente (veja nosso livro Populismo penal midiático), contra os criminosos poderosos, do colarinho branco (o caso mensalão disso é evidência inconteste). A cidade apavorada se quedou paralisada, pronta pra virar geleia, quando seu comandante (do poder punitivo estatal), depois de ter dito que tudo iria explodir, ao ver tanto horror e iniquidade (um dos países mais injustos do planeta), acabou mudando de ideia, oferecendo algo suavizante, para aquela população agonizante, constituída de poucos poderosos e uma imensa patuleia.
- A “Geni” (delação premiada), de repente, passou a ser mais reverenciada que um monge virtuoso. No começo ninguém acreditava nisso, porque “ela foi feita para apanhar, ela é boa de cuspir”. Mas de fato, logo ela, tão coitada e tão singela, cativara o forasteiro (poder punitivo estatal), tão temido e poderoso; agora o povo está estupefato, impotente e temeroso (ao ver as garras monstruosas do poder estatal). Repentinamente a cidade em romaria foi beijar a sua mão. Prefeitos, bispos, banqueiros, políticos, doleiros, empresários e marqueteiros, todos de repente estão implorando pela “Geni” (pela delação), que estaria destinada a quem “presta grande serviço para a pátria” (disse o Ministro Marco Aurélio). Não há nenhuma falta de ética em o Estado premiar quem delatou outros criminosos, se afirma. Então, “vai com eles, vai “Geni”, você pode nos salvar, você vai nos redimir, você dá pra qualquer um, bendita “Geni!”.
- O que era tão deplorável, de repente, está virando moda. Sinal dos tempos (áureos ou sombrios, conforme a visão de cada um). São as novas tendências, depois de tantos debates e tanto desprezo pela igualdade perante a lei. Roberto Jefferson, no mensalão, do regime fechado foi parar no semiaberto, tudo em virtude “dos relevantes serviços prestados à nação”. Por mais que a delação seja um poço de bondade (para os que dela se servem), chegando mesmo a ser “a rainha dos detentos”, “namorada de tudo que é nego torto, seja do mangue ou do porto”, o certo é que ela está atendendo todos (ela “dá pra qualquer um”), seja o poderoso ou um pobre lazarento. Maldita Geni ou bendita Geni. Artigo do Jurista e Professor Luiz Flávio Gomes